O Brasil tem, hoje, milhões
de motociclistas que possuem a requerida Carteira de Habilitação para pilotar
suas motocicletas em vias públicas. O fato de terem passado no exame teórico e
prático para obter a habilitação oficial, somado à crença de que quem sabe
andar de bicicleta sabe andar de motocicleta, leva a grande maioria destes
motociclistas a acreditar que realmente sabem pilotar uma motocicleta. E que estão
aptos a enfrentar os perigos do tráfego urbano das grandes cidades e as velocidades
mais altas permitidas nas estradas e autoestradas brasileiras.
O mesmo acontece com o
restante da população do País – incluindo as autoridades. Se o motociclista tem
sua Carteira de Habilitação, e, em condições normais, consegue conduzir sua
motocicleta do ponto A ao ponto B, ele deve, de fato, saber pilotar uma moto.
O que, então, explica o
alarmante número de acidentes envolvendo motocicletas nas cidades e estradas
brasileiras, sempre muito graves, incapacitando ou deixando seqüelas
permanentes nos motociclistas envolvidos, e muitas vezes fatais? A resposta
deve residir na imprudência e no sistemático desrespeito às leis de trânsito
por parte destes motociclistas. Situação que precisa ser corrigida por leis de
trânsito mais rigorosas, maior fiscalização por parte das autoridades
competentes, e campanhas de educação e conscientização dos motociclistas, do
tipo pilotagem responsável, preventiva e defensiva.
Apesar de ser inegável certa imprudência e desrespeito às
leis de trânsito – que precisa ser reprimido e corrigido – a verdade maior é
que, devido a
certas características do comportamento das motos em movimento, elas se tornam
uma caixa de surpresas para a maioria dos motociclistas. Vários aspectos do
comportamento dinâmico das motocicletas não são intuitivos – e é um perigo não
conhecer e entender este comportamento, e não aprender a usá-lo para pilotar a
moto.
A
armadilha inclui alguns componentes. O comportamento de uma motocicleta a baixa
velocidade é muito parecido com o comportamento de uma bicicleta. Como quase todo mundo aprendeu a andar de
bicicleta quando criança, quando se experimenta pela primeira vez uma moto a
baixa velocidade, tem-se a impressão que pilotar uma motocicleta não guarda
grandes segredos. Porém, quando velocidades acima das normalmente alcançadas
pelas bicicletas são atingidas, o comportamento das motos se altera de forma
radical, e surpreende a maioria dos motociclistas.
O que
equilibra uma moto em movimento é o desenho de seu sistema de direção combinado
com o efeito giroscópico gerado por suas rodas girando a uma velocidade acima
de alguns quilômetros por hora. A mesma
coisa acontece com as bicicletas, que acima de cerca de 10 km/h se equilibram
sozinhas. As motos, devido ao seu maior peso, precisam de uma velocidade um
pouco maior – acima de 20 km/h.
A
explicação é um pouco técnica. O desenho do sistema de direção da motocicleta
ou da bicicleta – sua geometria (especificamente o ângulo de inclinação do
garfo dianteiro em relação à posição vertical) – faz com que, ao inclinar a
moto ou a bicicleta para um lado, a roda dianteira automaticamente vire para esse
mesmo lado, numa tentativa de anular a inclinação e reequilibrar a moto ou
bicicleta.
É fácil
testar isso numa bicicleta. A uma velocidade não muito alta, tire as mãos do
guidão e, com o peso do seu corpo, incline a bicicleta para um lado. A roda
dianteira imediatamente vai virar para aquele lado, tentando reequilibrar a
bicicleta.
E o tal
efeito giroscópico, o que é?
Uma roda,
ao rodar, tem a sua massa submetida à ação da força centrífuga. Isto significa
que, do centro da roda para sua extremidade, uma força, proporcional à
velocidade de rotação da roda, tenta empurrar a massa da roda para fora. A ação
da força centrífuga sobre a massa da roda em movimento gera um efeito que é
chamado efeito giroscópico. A principal característica do efeito giroscópico é
tentar manter inalterado o plano de rotação da roda que o está gerando. É o
mesmo princípio físico que mantém um pião em pé enquanto ele estiver girando. A
“roda” do pião está num plano horizontal, paralelo ao solo, e enquanto estiver
girando acima de certa velocidade ela manterá este plano de rotação horizontal
– e o pião permanecerá em pé, desafiando a força da gravidade.
Isto
também se aplica a uma roda girando em um plano de rotação vertical em relação
ao solo. Enquanto tiver suficiente velocidade de rotação, a roda resistirá a mudanças
no seu plano vertical ao solo. É o que acontece quando rolamos uma moeda por
uma superfície plana (ela permanecerá em pé enquanto correr) ou quando rolamos
qualquer roda pelo chão (ela continuará em pé, rodando, até perder velocidade e
a força da gravidade superar o efeito giroscópico e a derrubar).
O fato da
motocicleta, acima de certa velocidade, se equilibrar sozinha é na verdade muito
bom. Fica muito mais fácil aprender a andar de moto, especialmente se o
candidato a motociclista já souber andar de bicicleta. Porém, a velocidades
mais altas, o efeito giroscópico gerado pelas duas rodas da motocicleta
torna-se tão forte que passa a atrapalhar o motociclista: o efeito giroscópico
das rodas começa a resistir às tentativas do motociclista de inclinar a
motocicleta – e realmente consegue dificultar muito essa tarefa.
Para
mudar a direção de uma moto é preciso incliná-la na direção em que se quer
seguir; assim, a velocidades mais altas o motociclista começa a enfrentar
dificuldades para mudar a direção da motocicleta ou para fazer curvas –
exatamente na hora em que ele mais necessita que a motocicleta obedeça a seus
comandos de direção com rapidez e precisão.
Para
completar a armadilha, a maneira mais fácil, rápida e precisa para inclinar uma
motocicleta rodando acima de 20 km/h, e iniciar uma mudança de direção ou
curva, é fazer pressão no guidão no
sentido contrário à direção que se quer seguir – ou seja, empregar a
técnica do contraesterço (countersteering, em inglês). Para inclinar a moto
para direita, e iniciar uma mudança de direção ou curva para a direita, o
motociclista deve inicialmente fazer pressão no guidão para virar a roda
dianteira para a esquerda – a moto imediatamente se inclinará para a direita, e
iniciará uma mudança de direção ou curva para a direita. Para inclinar a moto
para esquerda, e iniciar uma mudança de direção ou curva para a esquerda,
deve-se inicialmente fazer pressão no guidão para virar a roda dianteira para a
direita– a moto imediatamente se inclinará para a esquerda, e iniciará uma
mudança de direção ou curva para a esquerda. É esquisito, mas é assim que
funciona – ao contrário!
A maneira
mais natural (ou menos contraintuitiva) de empregar o contra-esterço é empurrar
o guidão da moto com a mão correspondente à direção que se quer seguir – curva
para direita, a mão direita empurra o guidão para frente; curva para esquerda,
a mão esquerda empurra o guidão para frente. Quase ninguém sabe disso, uma vez
que com bicicletas (devido à baixa velocidade que alcançam e a seu baixo peso)
não é importante ou necessário empregar essa técnica (apesar dela também
funcionar muito bem com as bicicletas).
Portanto,
combinando todos esses componentes, voltemos à armadilha. Ao guiar um veículo
qualquer, todo mundo faz o que aprendeu desde criança – curva para direita,
virar para direita, curva para a esquerda, virar para a esquerda. Era assim que
funcionava com o triciclo, com o carrinho e com o patinete. É assim que
funciona com os automóveis, caminhões e ônibus. É assim até com os aviões. Por
conseqüência, todo mundo desenvolve um poderoso reflexo condicionado
– ir para direita, virar para direita, ir para a esquerda, virar para a
esquerda.
Acontece
que com as motocicletas não funciona assim. Imagine a seguinte situação – um
motociclista segue por uma estrada de mão dupla, em sua pista e respeitando o
limite de velocidade de 80 km/h. De repente, na pista contrária, um automóvel
resolve ultrapassar um caminhão, sem perceber a moto que vem na direção oposta.
Não dá para frear – o motociclista precisa desviar a moto, o mais depressa
possível, para o acostamento à sua direita. E, por reflexo, vira
o guidão para a direita. O que faz a moto se inclinar e mudar a direção para a
esquerda – para cima do automóvel e do caminhão!
Isso não é ensinado a
nenhum candidato a motociclista enquanto se prepara para o exame de
habilitação; conseqüentemente, tampouco ele recebe qualquer instrução para
praticar e treinar insistentemente a técnica do contraesterço, num esforço para
recondicionar o mencionado reflexo quando estiver pilotando uma moto.
Disse
antes que vários aspectos do comportamento dinâmico das motocicletas não são
intuitivos, e apresentei acima o exemplo que envolve o comando de direção.
Outro exemplo importante envolve o comando de frenagem de uma motocicleta, que,
em conjunto com o comando de direção, são os principais comandos para conduzir
com perícia qualquer veículo – fazê-lo seguir na direção que queremos e fazê-lo
parar quando queremos.
Quase todas
as motocicletas têm freios na roda dianteira e traseira. Na grande maioria das
motos os freios são acionados por controles separados: a mão direita do piloto
aciona o freio dianteiro e o pé direito aciona o freio traseiro, e suas
atuações são independentes. Algumas motos têm freios que funcionam em conjunto,
isto é, quando se aciona o freio dianteiro o freio traseiro também é
imediatamente acionado (independentemente da ação do piloto), e vice-versa,
quando se aciona o freio traseiro o dianteiro também é acionado. Geralmente,
nesses sistemas automáticos, 60 a 70% do esforço de frenagem recai sobre o
freio dianteiro, e 30 a 40% do esforço recai sobre o freio traseiro. Por fim, atualmente
o sistema de antiblocagem dos freios conhecido por ABS já está sendo instalado
em algumas motocicletas, um importante desenvolvimento em prol da segurança das
mesmas.
O freio dianteiro desempenha o papel principal na frenagem
de uma motocicleta, assim como acontece nos automóveis. A
razão para tanto não é difícil de entender. Durante a frenagem, uma
significativa porção do peso do conjunto moto-piloto é transferida para a roda
dianteira, enquanto a roda traseira tem sua carga significativamente diminuída.
Esta transferência de peso é muito mais acentuada numa motocicleta que num
automóvel, devido principalmente à menor distância entre eixos e menor peso. Imagine
uma moto que pese 200 kg
e um piloto que pese 100 kg .
Imagine que o conjunto piloto-moto, quando parado, tenha seu peso distribuído
em partes iguais entre as duas rodas, que, portanto, suportarão 150 kg cada uma. Numa freada
de rua normal, para parar num sinal de transito, a transferência de peso poderá
resultar em 75% do peso na roda dianteira e 25% na roda traseira. A dianteira
da moto pesa agora três vezes mais que a traseira. Em velocidades mais altas,
numa freada forte, a transferência é ainda maior. Até 90% do peso poderá ser
transferido para a roda dianteira, deixando para o freio traseiro apenas 30 kg , mais o “momentum” da
roda traseira e do motor.
É preciso notar que, com o
advento do freio a disco, dos dois discos de freio na roda dianteira, dos
avanços na composição das pastilhas de freio e na aderência dos pneus, nenhum
outro comando da motocicleta produz resultados tão dramáticos, em tão pouco
tempo e com tão pouco esforço, quanto os freios. Uma freada violenta pode ser
assustadora!
Apesar de ser verdade que a
aplicação balanceada do freio dianteiro e do freio traseiro é a forma mais
eficiente de parar uma moto, também é verdade que um grande número de acidentes
é causado pela aplicação do freio traseiro. Por quê? Muitos pilotos se habituam
a usar predominantemente o freio traseiro, pois ele causa menos “afundamento”
da suspensão dianteira. Ocorre que ele é muito menos eficiente que o freio
dianteiro (daí o menor “afundamento” da suspensão dianteira), o que por si só
já não recomenda seu uso predominante. E, pelas razões acima expostas, ele provoca
o travamento da roda traseira com muito mais facilidade do que acontece com a
roda dianteira.
O fácil travamento da roda
traseira ocorre exatamente pela transferência do peso para frente, e tem uma
conseqüência grave – o responsável pelo equilíbrio da moto, a partir do pivot das bengalas dianteiras para trás,
é o efeito giroscópico gerado pela roda traseira. Se ela travar, o efeito
giroscópico desaparece e a moto se desequilibra violentamente, quase sempre com
resultados desagradáveis.
Balancear a aplicação dos
freios dianteiro e traseiro na medida certa é muito difícil, pois não existe
uma medida certa. A baixa velocidade e numa frenagem normal, o balanceamento dos
freios é inconseqüente. A velocidades mais altas, e à medida que se aplica o
freio dianteiro com mais intensidade, deve-se diminuir a intensidade de
aplicação do freio traseiro para evitar o travamento da roda traseira. Para ser
bem executada, a manobra requer tanta atenção do piloto que não vale a pena. Minha
decisão pessoal é usar predominantemente o freio dianteiro, deixando o traseiro
para raras e especiais situações.
Isso também não é
ensinado a nenhum candidato à motociclista durante sua preparação para o exame
de habilitação; conseqüentemente, tampouco ele recebe qualquer instrução para
praticar e treinar o uso do freio dianteiro e do freio traseiro,
independentemente e em conjunto.
Uma vez
que a direção e a frenagem são os principais fatores para conduzir com perícia
e competência qualquer veículo, uma vez que os motociclistas brasileiros não
são adequadamente instruídos e treinados nesses dois aspectos (além de outros
de menor importância) no processo de obtenção de sua Carteira de Habilitação
Nacional, é uma trágica ilusão acreditar que realmente sabem pilotar uma
motocicleta.
Como também é uma trágica ilusão acreditar que o
alarmante número de acidentes envolvendo motocicletas nas cidades e estradas
brasileiras será corrigido por leis de trânsito mais rigorosas, por maior fiscalização
das autoridades competentes, e por campanhas de educação e conscientização dos
motociclistas do tipo pilotagem responsável, preventiva e defensiva.
O
que de fato será preciso para alterar esta dramática situação é o aumento da
perícia dos motociclistas brasileiros, através:
-
do imediato aprimoramento do processo de instrução e treinamento dos candidatos
à obtenção da Carteira de Habilitação para motocicletas;
-
da imediata adoção de critérios mais rigorosos para a aprovação destes
candidatos no exame prático;
-
e do imediato início de um programa de reciclagem, a nível nacional, dos
motociclistas já habilitados.